A persistência da memória (1931), de Salvador Dalí.
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Um costurar entre o sujeito, o criar e o mundo contemporâneo.
"..O veneno do
vazio nos mata pela indecisão,
ou nos
ressussita pela criatividade de solução."
Valéria
Domanski de Medeiros
Por
Daniele Spada
O vazio no começo de
qualquer trabalho que envolve nossa capacidade criativa nos assusta, para ser
mais assertiva, nos apavora. Gera dúvidas que não conseguimos digerir e nos
paralisa. Acreditamos que não temos nada dentro de nós, um branco, um hiato, e
o mundo contemporâneo nos leva à uma caixa de pandora, a internet.
Nela acreditamos encontrar algo para por no vazio e por mais que naveguemos e
nos surpreendamos com milhares de possibilidades de soluções, o vazio ainda
está ali. Como entrar nessa roda da morte: A criatividade?
A criação nunca é uma
questão somente externa, é questão do sujeito.
“Consideramos a criatividade um potencial inerente ao homem, e a
realização desse potencial uma de suas necessidades... O criar só pode ser
visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato,
criar e viver se interligam.” (OSTROWER, 2004, pág. 5.)
O fato do homem desde a
Pré-História desejar se expressar criativamente, não se restringe às pinturas
rupestres, mas em sua totalidade, no seu modo de solucionar problemas e
conflitos entre sua existência e o meio que estava inserido. Entre o homem e o
meio. Inserido na cultura.
Outra ideia é a de que criar corresponde a um formar, um dar forma
a alguma coisa...no próprio modo de se estabelecerem certas relações mediante
as quais vai surgir para nós o sentido da forma, dos limites e do equilíbrio, o
fator cultural valorativo atua sobre as configurações individuais; sendo assim
o impacto da contemporaneidade tem influenciado bruscamente o nosso ato de
formar e fazer. A aceleração é tão forte e tão generalizada que até mesmo os
mais "ligados" encontram-se, em graus diversos, ultrapassados pela
mudança (Lévy,1999) e é neste ponto que a inteligência coletiva se faz necessária
no ato de criar, através das trocas de ideias, experiências e observações que
possibilitam amenizar os conflitos advindos do movimento tecnossocial. Hoje,
quando nos vemos em qualquer situação de dúvida, recorremos ao Google, seja na
escrita, no significado ou no desconhecido. A crença que o saber está a
disposição de qualquer um, a qualquer tempo por vezes nos acomoda e o trabalho
é substituído por um compilar virtual. A união de partes existentes para criar
um novo todo organizado é da ordem da criatividade, mas o se acomodar com tal
"técnica" retira de nós a espontaneidade e liberdade no processo
criativo, entendendo a espontaneidade como ser coerente consigo mesmo.
Admite-se que nesse tempo, o criar esteja sendo reprimido,
manipulado, massificado, enrijecido. O homem contemporâneo, colocado diante de
múltiplas funções que deve exercer, pressionado por múltiplas exigências,
bombardeado por um fluxo ininterrupto de informações contraditórias, em
aceleração crescente que quase ultrapassa o ritmo orgânico de sua vida, em vez
de se integrar como sujeito inserido na cultura, aliena-se de si, de seu
trabalho e de suas possibilidades de criar. (OSTROWER, 2004).
Em seus sonhos encontra a liberdade que deixa de lado no
dia-a-dia. Neles, o inconsciente tem liberdade de produzir imagens, mesmo que
inversas, contraditórias e enigmáticas. As imagens parecem flutuar, não temos
domínio sobre elas, vão tecendo histórias que muitas vezes nos
surpreendem pela sua complexidade e falta de lógica, assim deveria ser nosso
processo criativo, dando espaço ao "acaso".
No sonho, não há domínio ou censura para que essas imagens
possam dançar livremente em um magnífico ato criativo do
inconsciente. A censura, então, com a intensão de evitar o
desprazer, decidirá se uma ideia surgida na mente pode ou não chegar a
consciência. Estabelecendo um paralelo entre
a censura e as críticas e julgamentos durante o processo criativo, entendemos que
tais procedimentos atrapalham o fluir do ato de criar.
O processo criativo vai fazer uso da ‘memória psíquica’. Em nossa
experiência vivencial estruturam-se configurações de vida interior, formas
psíquicas, que surgem em determinados momentos e sob determinadas condições, e
são lembradas, 'percebidas' em configurações.
Pelos processos ordenadores da memória, articulam-se limites entre
o que vaza de um lembrar psíquico, o que lembramos dos fatos, o que pensamos,
imaginamos e a infinidade de incidentes que passam pela nossa vida.
Nossa memória seria, portanto uma memória não-factual. Seria uma
memória de vida vivida, com novas interligações e configurações aberta às
associações (Ostrower, 2004).
Na era tecnológica, as memórias das máquinas, têm evoluído sempre
em direção a uma maior capacidade de armazenamento, maior rapidez de acesso e
confiabilidade a fim de não perdermos dados importantes, armazenamos em
suportes de gravação e leitura automáticas dados que queremos guardar e
compartilhar por meio da transmissão de informações por todas as vias de
comunicação imagináveis (Lévy,1999), mas esta serve apenas como local para
guardar informações, distante do conceito de memória do homem que interliga o
ontem ao amanhã e que além de renovar um conteúdo anterior, a cada instante
relembrado constitui uma situação nova e específica. Não guardamos dados, nós os
reconstituímos.
E qual o papel da memória no processo criativo? Fugir da alienação
de si e recolher das experiências anteriores a lembrança de resultados obtidos,
que orientará possíveis ações no processo criativo. As intensões que se
estruturam junto com a memória nem sempre serão conscientes, fazem-se conhecer
no curso das ações como uma espécie de guia aceitando ou rejeitando certas
opções e sugestões contidas no ambiente dependendo de escolhas que se farão inconscientemente.
As associações provindas
de áreas inconscientes do nosso ser, compõem a essência de nosso mundo
imaginativo. Espontâneas, elas afluem em nossa mente com uma velocidade
extraordinária, e se não forem cerceadas por uma barreira da crítica ou da
censura, geram um mundo experimental, mágico, de um pensar e agir em hipóteses
- do que seria possível, nem sempre provável. Num instante podemos manipular
fatos, eventos, pessoas, objetos, sem que eles existam fisicamente, apenas na
esfera mental da criação. Assim como no mundo virtual, onde as imagens, textos,
músicas, são manipuladas e se encontram num tempo do possível como o real, só
lhe faltando existência.
As associações são
extremamente importantes nesse processo, onde necessitamos sair do lugar comum,
suspender nossas certezas para que um novo re-conhecimento nos motive
à novas indagações, novas estruturações para um novo recomeço, nesse processo
dinâmico do ato de criar.
Nossos olhos brilham no
momento que apreendemos-ordenamos-reestruturamos-interpretamos a um tempo só,
ou seja, temos um insight.
A ideia, o processo, as
desconexões, tudo parece fazer sentido e o processo criativo passa a ficar mais
claro e menos doloroso, as incertezas vão dando espaço ao querer não ter
certezas, e as dúvidas passam a ser as melhores aliadas nessa jornada de
experimentações.
Damos espaço para trocas
de informações e permitimos novos olhares sobre o que estamos elaborando,
propiciando um pensar coletivo. Neste ponto as pesquisas na internet, já não
mais nos orientam, pois nossa ordenação interior pulsa e exerce sobre nós uma
força maior e conseguimos usar o espaço virtual não como uma base sólida de
resultados, mas como uma plataforma de possibilidades e divergências que nos
fazem questionar e nos recolher novamente, para de lá emergir um impulso
criador.
A cobrança com o resultado dá espaço ao prazer na
elaboração, o imediatismo do mundo contemporâneo é deixado de
lado, não sabemos quanto poderá durar nem onde chegaremos, e somente
trabalhando, a necessidade de novas buscas se tornam emergentes e sentimos que
o momento final do trabalho se aproxima.
O sujeito do processo criativo detém o saber sobre a hora de
finalizar o trabalho no instante em que a resolução reflete seu equilíbrio
interno. Isto não quer dizer que o trabalho esteja finalizado no sentido de
estar resolvido, ainda podem perdurar perguntas que não se esgotarão apenas
nessa etapa do processo.
Uma nova caminhada se inicia, e com ela questões remanescentes
dessa etapa se unirão às novas necessidades de um estado de tensão, de uma
orientação interior, que não conhecemos.
Um caminho de experimentações e vivências onde tudo se mistura e
se integra. O "pisar em ovos" torna-se divertido e só encontrando,
saberá o que buscou. Criar livremente, compreender no sentido mais lúcido e
amplo o que é ser livre: Ter entendimento de si, uma aceitação de si, ocupar
seu espaço de vida.
É nesta hora que o vazio
se torna nosso aliado, e nas tentativas de preenchê-lo é que se configura o
processo criativo. Ele vai estar sempre lá nos impulsionando, nos movimentando,
porque esse desejo de completude nunca será satisfeito.
Texto elaborado a partir
do livro Criatividade e Processos de Criação da Fayga Ostrower, num costurar
entre o sujeito, o criar e o mundo contemporâneo.
Bibliografia
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34,1999.
LÉVY, Pierre. O que é virtual?. São Paulo: Editora 34,2009.
LONGO, Leila. Linguagem e psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
OSTROWER, Fayga . Criatividade e processos de criação. Rio
de Janeiro: Editora Vozes, 2004.